Os profissionais da redução de danos

Publicado em 01/10/2018 - Por

Matéria publicada originalmente na Vice, com adaptação livre para o Psicodelia.

Antes de embarcar num avião, é uma boa ideia conhecer as diretrizes de segurança para viagens aéreas – aperte o cinto, saiba onde estão as saídas e, no caso de emergência no vôo, siga as instruções da equipe de bordo. O consumo de substâncias psicodélicas pode ser parecido com uma viagem aérea: as pessoas fazem isso o tempo todo e geralmente não têm nenhum problema, mas quando algo dá errado, pode ser bem ruim. E é aí que entra a figura do profissional de redução de danos.

“Num avião, você pode ir até os comissários de bordo caso algo dê errado”, disse Grace, profisional de redução de danos. “Numa viagem de ácido, é praticamente a mesma coisa. As pessoas precisam saber que estão seguras e vão ficar bem.”

Por mil dólares, Grace e seu sócio P.J., que pediram para ter os nomes mudados, sentam na casa de quem faz uma viagem psicodélica, o que geralmente significa tomar LSD, MDMA ou comer cogumelos com psilocibina. Eles não procuram ou fornecem drogas. Só estão ali para garantir que você tenha uma experiência segura.

“No geral, ficamos de olho na pessoa”, disse P.J. “Acompanhamos sua respiração, sua aparência e perguntamos se está tudo bem.”

Eles se encontram com os clientes antes para conhecê-los e discutir por que eles decidiram usar uma substância psicodélica. Alguns estão apenas curiosos, outros esperam trabalhar traumas e diminuir a ansiedade. No dia da viagem, P.J. e Grace trazem playlists e sálvia ou palo santo para criar um clima cerimonial, depois se acomodam confortavelmente perto do cliente por cerca de seis a dez horas. O objetivo principal é criar um ambiente seguro, e não guiar nem moldar a experiência de ninguém. “Uma das coisas típicas que podemos dizer é ‘você está seguro’. Essa é uma boa frase”, disse P.J. E se a pessoa está tendo dificuldades, eles lembram os usuários de que “isso vai acabar”.

Grace e P.J. são experientes e se especializaram em protocolos de uso de drogas para pesquisas de alucinógenos, que incluem convidar o participante a sentar ou deitar num sofá confortável com um cobertor, diminuir as luzes e usar fones. A ideia é fazer o participante se sentir seguro e encorajá-lo a ter uma experiência de se voltar para dentro.

A taxa de mil dólares inclui a consulta inicial, o acompanhamento de um dia e uma discussão “pós-viagem” nas semanas seguintes se o cliente quiser. Eles trabalham com uma taxa flexível para quem não pode pagar por seus serviços. “Não queremos atender apenas pessoas ricas”, disse P.J. “Não somos rígidos. Se alguém tem o dinheiro, ótimo, mas se não tem, provavelmente ainda vamos trabalhar com a pessoa.”

Se sentar ao lado de alguém não é ilegal, mas considerando a natureza um tanto ilícita do trabalho, eles preferem proteger suas identidades e, até agora, conseguiram a maioria de seus clientes por meio do boca-a-boca. “Se manter underground é parcialmente importante”, disse P.J. “Mas se fosse totalmente importante, não teríamos um site”, ele ri. O site é novo, uma tentativa de fazer uma propaganda mais ampla de seus serviços, com um endereço de e-mail para contato.

Muitos usuários de primeira viagem de cogumelos ou LSD consomem essas drogas sem pensar em ter a consultoria de um especialista, mas ter alguém que cuide de você é altamente recomendado, sobretudo para iniciantes. Em seu livro de 2011 The Psychedelic Explorer’s Guide, o psicólogo James Fadiman escreveu que a importância de um guia não é exagerada.

“Seu guia conhece o terreno, pode sentir onde você está, e vai poder te aconselhar ou avisar se for necessário”, escreve. “Uma sessão bem estruturada facilita que a primeira experiência psicodélica seja significativa, saudável e melhore sua vida.”

Fadiman recomenda um processo de três dias – um dia de descanso e preparação emocional, um dia sob a substância, e um terceiro dia para refletir e escrever observações sobre a experiência. Praticamente a mesma linha da prática de Grace e P.J.

Parte da motivação deles para começar o negócio está enraizada em suas próprias experiências. “Na minha primeira jornada com ayahuasca, teria sido muito bom ter um guia pessoal”, disse P.J. Ele tomou a substância num cenário de cerimônia em grupo. “Foi muito difícil e eu estava com medo de pedir ajuda, mesmo eles tendo me aconselhado a isso. Às vezes você não consegue pedir ajuda!” Isso criou a maneira como ele trabalha com as pessoas agora. “Sei perguntar, checar, e não esperar alguém me dizer ‘Eu queria ajuda mas não consegui pedir’.”

Zendo Project, parte da Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS), uma organização sem fins lucrativos, leva o conceito para uma escala muito maior, oferecendo apoio psicodélico pessoal em festivais e eventos. Eles treinam milhares de voluntários e montam espços em lugares como o Burning Man.

“Descobrimos que se você erguer uma barraca, as pessoas virão”, disse Sara Gael, diretora de redução de danos da MAPS, acrescentando que festivais como o Burning Man estão ansiosos para incorporar os serviços deles em seus planos de segurança. “Pessoas que estão mal, por drogas ou outra coisa, geralmente têm medo de pedir apoio ou não há apoio disponível. Elas podem acabar sendo contidas ou sedadas desnecessariamente, quando a situação poderia ter ficado sob controle com uma abordagem de apoio de colegas.”

As diretrizes do Zendo Project incluem manter a pessoa fisicamente segura, oferecendo cobertores e água, e não tentar guiar a experiência psicodélica, mesmo se estiver sendo ruim. “Explore questões perturbadoras quando elas emergirem”, aconselha o site deles. “Mas simplesmente estar lá com a pessoa já pode fornecer o apoio que ela precisa.”

Brittany, voluntária do Zendo Project, já viajou com eles para dois festivais Lightning in a Bottle na Califórnia, nos EUA. As coisas podem ficar bem caóticas. “Você tem muita gente nova”, ela disse. “Muitas pessoas nunca estiveram num festival de música, é a primeira vez que elas estão tomando psicodélicos, e isso pode ser demais para elas.” Mesmo assim, considera a experiência gratificante. “Poder sentar com alguém e permitir que a pessoa seja vulnerável com você e mostre que está assustada. Digo que entendo e que já passei por isso.”

Uma vez um homem perguntou a ela: “Isso está realmente acontecendo?” Ela não sabia como responder. “Só olhei para ele e disse: ‘Parece real?’”

As pessoas em geral ficam hesitantes em contar que drogas tomaram. Brittany garante que elas não vão ter problemas e, em alguns casos – como uma pessoa que ela encontrou que tinha tomado Xanax, MDMA e Adderall –, isso resulta numa viagem até a barraca do médico. Muitos frequentadores de festivais acham o caminho para a barraca por conta própria, mas voluntários também procuram pessoas na multidão que podem precisar de ajuda ou estão agindo de maneira estranha. “Às vezes temos que escoltar a pessoa gentilmente até a barraca do Zendo, o que pode demorar muito”, ela disse.

Ela já se sentou com pessoas que não diziam nada e pessoas que achavam que iam morrer. Uma vez um homem perguntou a ela: “Isso está realmente acontecendo?” Ela não sabia exatamente como responder. “Só olhei para ele e disse ‘Parece real?’” Ele ficou muito emotivo e disse que não sabia. “E eu disse: ‘acho que se você está respirando, então é real’. E isso o tirou daquelas emoções e ele se sentiu melhor. Só queremos garantir que a pessoa esteja ancorada para não afetar a experiência dos outros ou tornar a situação ainda mais difícil para ela”, ela me disse. “Todo mundo só quer saber que não vai morrer.”

Mesmo se uma pessoa está tendo uma experiência positiva com um psicodélico, ainda pode ser útil ter alguém por perto, me disse Brittany. Você pode precisar de ajudar para chegar ao banheiro quando sua percepção está distorcida, por exemplo, ou alguém que te dê água para evitar desidratação. Ela também recomenda estar num lugar fechado, como seu quarto. “Se você está na natureza, pode ser maravilhoso, mas a paranoia pode bater se alguém te ver ou se você tiver que fugir da polícia.”

Todos os cuidadores com quem falei enfatizaram a importância de levar essas drogas a sério, conhecer os riscos, e não misturar psicodélicos com outras drogas. Fadiman até diz que tomar psicodélicos no contexto do seu guia não é uma “experiência recreativa”, mas sim espiritual.

“Acho que muitas pessoas tomam a droga de maneira recreativa mas sob o disfarce de medicinal”, disse P.J. Outras podem ter lido o best-seller do jornalista Michael Pollan sobre psicodélicos How to Change Your Mind, e decidem que psicodélicos vão resolver seus problemas: curar sua depressão ou acalmar sua ansiedade.

“Não é uma cura rápida”, acrescenta P.J. “Muitas das histórias que você vê têm manchetes como ‘Fui para o Peru, tive uma experiência e voltei curado!’ Esse não é o caso na maioria das vezes.” Em vez disso, ele e Grace aconselham seus clientes a incorporar outras modalidades como meditação, trabalho corporal somático e Reiki. “Eu chamaria psicodélicos de ‘aceleradores’ quando usados da forma certa”, disse P.J.

“Essas drogas te dão insights e ferramentas, mas você não vai virar uma pessoa holística espiritual só porque comeu uns cogumelos”, finaliza Grace.

Obs.: No Brasil existem diversos coletivos especializados em redução de danos como o Respire, Equilíbrio, Lótus e Luz Azul. A maioria pode ser encontrada atuando nos principais festivais do país.

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