Raves viram tema de dissertação de mestrado – 3ª parte

Publicado em 22/05/2008 - Por Eliel Cezar

Dando continuidade à nossa série sobre raves no mundo acadêmico, hoje vamos divulgar, na íntegra, o trabalho de mestrado que mergulhou a fundo no universo das raves e procurou identificar se essas festas podem ser consideradas legítimos territórios de libertação. E, para finalizar, colocamos o próprio autor da dissertação para falar sobre o trabalho. Se você perdeu os 2 primeiros artigos sobre o assunto, pode encontra-los aqui e aqui. A pesquisa de Alexandro Camargo, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), concluiu que as raves não podem ser enquadradas no conceito de Zonas Autônomas Temporárias (TAZ). Conforme definiu o escritor anarquista Hakim Bey, o conceito de TAZ designa espaços de libertação, em que a presença do Estado é mínima ou inexistente. Nesses locais, regras de comportamento impostas pela sociedade poderiam ser burladas, possibilitando a libertação psicológica dos freqüentadores.

Com o trabalho, Alexandro Camargo conquistou o título de mestre pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da UFMT. Sua ligação com a música eletrônica, no entanto, vai além do interesse acadêmico. Só por curiosidade, olha só o que ele afirma na parte de agradecimentos do trabalho: “Não por último, agradeço a sublimação e ao imaginário que a música eletrônica me oferece. Amo Música Eletrônica. Prazer, Alegria. Viver”. Quem quiser conferir a dissertação, basta clicar aqui para fazer o download do trabalho em PDF. Além dos aspectos já citados, o texto traz inúmeros pontos interessantes. Apresenta a história das raves, desde seu início, na clandestinidade, e sua expansão pelo mundo, fala ainda sobre o surgimento das raves no Brasil e sobre o polêmico tema das drogas.

ENTREVISTA:

Qual foi a metodologia utilizada na pesquisa? A pesquisa foi realizada por fases. A primeira se estendeu por um ano e meio e compreendeu o período de reconhecimento das festas rave em Cuiabá. Foram visitadas seis festas com características distintas, sendo algumas mega raves e outras private party. Essas festas ainda podem ser classificadas como tecno, trance, day party e festas noturnas. O objetivo do trabalho de campo, nessa fase, foi o de recolher material como flyers, registros fotográficos dos eventos, além de identificar freqüentadores das festas e contatá-los para entrevista. A segunda fase compreendeu o levantamento bibliográfico sobre festas rave. Foram analisadas dissertações e teses que versam sobre as festas rave, livros, jornais e revistas; e material eletrônico disponível na internet e em comunidades virtuais. A terceira fase compreendeu as entrevista com os freqüentadores escolhidos. Foram selecionados cinco freqüentadores, sendo três mulheres, dois homens, com idades entre 20 e 29 anos. Todos os entrevistados freqüentam há, no mínimo, cinco anos festas rave, tendo as mais diversas profissões, deste chefe de cozinha internacional a manicure /pedicure. As entrevistas foram realizadas em dois momentos. No primeiro, o entrevistado respondia uma associação livre de palavras, sendo no mínimo três e no máximo cinco palavras. Dentre as palavras escolhidas para a resposta estavam rave, Estado, liberdade, ‘bala’ e festa, tendo como finalidade identificar de forma objetiva a idéia que os entrevistado possuem sobre as palavras, para então traçar uma suposta relação entre atividades festivas, Estado, liberdade e apropriação do uso ou não de substâncias psicoativas. No segundo momento da entrevista, foram realizadas as perguntas utilizando um roteiro semi-estruturado. As questões foram organizadas em quatro temáticas, dentre elas “festa”, “estado de consciência”, “sociedade e Estado” e “Psicologia”. O objetivo dessa etapa era identificar a idéia que se tem da festa, relacionada a possíveis conceitos de underground, TAZ e momentos de libertação. A que conclusão o trabalho chegou? Os territórios festivos das raves não se constituem como territórios autônomos. Pelo contrário, são territórios extremamente controlados. No imaginário criado sobre as raves, as festas têm um caráter de liberdade. Podemos observar nas raves alguns movimentos interessantes: a fuga da cidade para “outros lugares”, para além das boates e clubes, para além do asfalto da cidade grande, para além dos espaços disciplinares da escola, do exército, da empresa com hora marcada para entrar, da casa e da família. É na rave que o freqüentador se encontra consigo mesmo e se desconecta da matriz do controle e da disciplina. Por outro lado, o controle que as autoridades impõem sobre a população, e que a população impõe sobre si própria, modificou a maneira de ver esse “estilo de vida”. Já não existe mais o ideal de liberdade, a não ser no discurso de marketing para divulgação das festas. Quais as implicações disso? As implicações se dão na idéia que nem subjetivamente somos livres. O Estado e a sociedade se apoderaram do nosso “eu”. As raves hoje, no Brasil, se transformaram em mais um sistema disciplinar e de controle. Não apenas pelos convites pagos e numerados por lotes, mas pelo modo como as raves são pensadas e concebidas: as luzes negras, as pulseiras para identificação de convidados, a segurança, a iluminação intensa como modo de vigilância. Toda sua estrutura, divulgação e organização têm um propósito disciplinar pré-determinado. O espaço livre foi substituído pelas cercas de contenção, pela disciplina do andar, comer e beber, do vestir. As raves se tornaram uma utopia de espaço livre e autônomo. Para os ravers entrevistados no trabalho, os seus momentos de ‘liberdade’ são cuidadosamente gerenciados, regulados e monitorados. As pessoas que entrevistei concordam que nas festas não se vêem as pessoas como elas ‘realmente’ são. De um lado, o estado de ‘êxtase’ ou estado ‘limite’ é vivido como um momento em que cada um simplesmente ‘deixa-se levar’ e como meio de voltar-se a uma espécie de estado mais ‘natural’. Por outro lado, é visto como um momento de não em que o indivíduo é ‘escondido’ por drogas e pela ‘irrealidade’ geral do evento. Em resumo, só porque a prática da rave pode prover uma liberdade de certas práticas regulatórias do dia-a-dia (como trabalhar ou ir à escola), isso não significa que ela seja, necessariamente, um espaço desregulado, uma TAZ. Isso porque até mesmo a experiência de liberdade pode envolver mecanismos de auto-gestão e regulação. Nesses territórios festivos, vemos também a discriminação social. Vemos o brutal culto ao corpo, mesmo que para isso a saúde corra riscos, e a abstenção política, ou seja, uma indiferença pelo lado social. Tudo isso se reflete no território das festas rave. Elas, portanto, apenas refletem os modos de vida da sociedade, reproduzem e reafirmação seus valores. De que forma as festas rave são abordadas no trabalho? As festas rave são abordadas do ponto de vista subjetivo e para isso utilizou-se com enfoques teóricos e metodológicos interdisciplinares, que conjugam o olhar da Geografia, preocupada com a construção do espaço pela sociedade, e o da Psicologia Social, preocupada com o indivíduo e sua consciência social.

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