O menino que gritava lobo

Publicado em 07/11/2010 - Por Eliel Cezar

Parece brincadeira: o decadente programa “Fantástico”, na sua desesperada cruzada de imbecilização pela audiência, mais uma vez dedica espaço no horário nobre para atacar as “alarmantes” festas eletrônicas.

Era uma vez um garotinho muito levado. Sozinho no bosque, acompanhado apenas por suas ovelhas, decide aprontar uma traquinagem. Ele passa a gritar: “Socorro, socorro! Um lobo está a me atacar!” A população do vilarejo, alarmada e iludida pelo logro, corre desesperada para acudir aquele que grita. Bem, o resto da história você já conhece….

O interessante é observar que, na vida real, diferentemente da fábula, o lobo de verdade nunca aparece, mesmo quando o garotinho se esgoela não no bosque, mas em rede nacional de televisão.

A metáfora é boba, ok, mas é que a situação parece piada: hoje, mais uma vez, o programa “Fantástico” dedicará parte do horário nobre mais caro da televisão para falar um “problema” considerado “alarmante”. Segue a chamada: “O Fantástico deste domingo mostra uma situação alarmante! É um novo tipo de festa que se espalha pelo Brasil e mistura brinquedos de parque de diversões, música eletrônica e drogas à vontade! Vários frequentadores dessas festas acabam tendo surtos, alucinações e precisam de atendimento médico urgente! As brigas explodem a todo momento. E tudo isso dura horas e mais horas, sem qualquer controle.”

Quantas e quantas vezes já não vimos matérias dedicadas a isso, tentando pintar a cena eletrônica como um antro de perdição em que jovens estudiosos, trabalhadores e de futuro promissor se perdem em meio a uma orgia de drogas e falta de valores morais? E, curiosamente, dessa vez, uma semana antes da maior festa eletrônica do ano.

A matéria só passa daqui algumas horas, mas os clichês já são óbvios, e mais uma vez a família brasileira verá o retrato distorcido da cultura eletrônica, definida pela reportagem única e exclusivamente pelas drogas. A generalização e o sensacionalismo, sabemos, são armas desesperadas de um programa que amarga a pior audiência de sua história. Contra chavões, a obviedade. Brigas acontecem (aliás, em escala muito superior) em micaretas, bailes funk, rodeios, shows da Ivete Sangalo que a Rede Globo patrocina.

O abuso de drogas existe desde o Neolítico, alguns milênios antes do primeiro “Evolution” ser instalado na Fazenda Maeda e mesmo antes de Derrick May tocar sua primeira nota em um sintetizador. Contudo, o alvo da imbecilização promovida pelos atiradores de elite dos auto-proclamados guardiões da moral continua sendo única e exclusivamente as festas eletrônicas. E, infelizmente, na medida em que o garotinho Zeca Camargo grita lobo, ele continua chamando a atenção das ovelhas e da sociedade, que deve se embrenhar em mais um cruzada em “salvação da juventude”. Vocês sabem como funciona a caça às bruxas. Você sabe quais são os argumentos do Quarto Poder. Deve ser um dever de cada um de nós, amantes da cultura eletrônica, lutar contra a imbecilização. Compartilhe com seus amigos e familiares informações sobre sua maravilhosa história, sobre a inovação tecnológica que promove, sobre a profusão de artes sonoras e visuais que estimula, sobre o caleidoscópio de estilos, sobre o vultoso estímulo econômico.

Não tenham medo de argumentar contra o Zeca Camargo. Mostre que o retrato pintado pela televisão está muito, mas MUITO longe de corresponder à realidade da nossa riquíssima cultura musical. Sabemos que a (des)informação é antes objeto de consumo imediato que de reflexão, e é aí que argumentos pobres formam consensos ignorantes. E essa atuação da indústria cultural vale para eleição de Collor, para a imposição de hábitos sócio-culturais e para tentar destruir a cena eletrônica. Não nos definimos pelas drogas. Não nos definimos pelo sem-número de falsas e ignóbeis generalizações.

A cena eletrônica não é o lobo, e felizmente cada vez mais pessoas percebem que os clichês requentados não definem a cena. Já está na hora de deixar o garotinho sozinho com suas ovelhas e seus berros.

– Leia também o texto do João Anzolin, no Rraurl.

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