Review da XXXperience 14 anos: Parte 2

Publicado em 07/12/2010 - Por Eliel Cezar

Acasos da vida… após nosso podcast-review, segue uma avaliação escrita da festa!

Há algumas semanas, fui convidado pelo amigo Leo Wandresen a escrever o review da XXX 14 anos para uma revista de grande circulação. Contudo, devido a alguns posicionamentos contrários da publicação em relação ao conteúdo do texto, acabou não rolando. Mas, se não vai para a revista, segue, na íntegra, mais um review para vocês!

Já alerto: ele é enorme, de longe o maior que já fiz, porque ocuparia algo entre 4 e 6 páginas da edição. Para os corajosos que se aventurarem nas linhas desse meu post n˚50 no Psicodelia, boa sorte! 😀

REVIEW: XXXPERIENCE 14 ANOS

por Guilherme Raicoski e Leo Wandresen

(agradecimento a Eliel Cordeiro, Cris Trevisan, Carla Franco e Mohamed Hajar pelas valiosas críticas e apontamentos)

 

Sete horas da tarde, dia 14 de novembro de 2010. À primeira vista, parece que a Fazenda Maeda, em Itu, assistirá a mais uma grande festa open air, como tantas outras que marcaram esse espaço desde que a cena psytrance explodiu no Brasil nos anos 2000. Todos os grandes chavões estavam lá: as botonas de cano alto, os óculos escuros, as mochilas, os guarda-chuvas de uma certa marca, o pesado esquema de segurança e a onipresente poeira, que historicamente se reveza com a lama como a decoração natural do ambiente.

Mas, na medida em que o tempo passa, as longas horas, suficientes para permitirem ao sol timidamente se acomodar e ressurgir no horizonte, eclipsando os lasers que dominaram a madrugada, fica claro que algo diferente e especial aconteceu naquele espaço tão acostumado às batidas eletrônicas.

Importante alertar que o texto a seguir pode parecer excessivamente ameno, quase publicitário, sobretudo ao serem postas na balança as últimas edições da ex-rave. Mas, se você era uma das mais de 30 mil pessoas sob o sol escaldante de Itu no último feriado da República, certamente vivenciou, em alguma medida, os momentos especiais relembrados nas próximas linhas.

 

Uma Babel Eletrônica em Itu?

 

As últimas edições da XXXperience foram marcadas pela busca de uma nova identidade musical. Aos poucos, procurou-se oxigenar os line-ups, antes dedicados quase que exclusivamente ao psytrance em suas vertentes full on e progressive, com novos estilos. Contudo, era claro que muitas atrações ficavam soltas em line-ups e pistas igualmente soltas, com identidades frouxas, porosas.

Mas, dessa vez, até o mais pessimista e crítico dos ravers teve de guardar suas pedras para outra ocasião. Afinal, é consenso que a edição de 14 anos, em poucas palavras, acertou em cheio.

Já se pode adiantar que a XXX conseguiu unir, num único espaço, de maneira coerente e inédita, o popular e o underground, o uplifting e o obscuro, o acessível e o complexo, o dançante e o emocional, os 125 e os 150 BPM, numa verdadeira Torre de Babel em que (quase) todas as línguas da e-music conviveram em harmonia.

 

Palco Principal

 

Outrora dominado pelos altos BPM’s, o palco principal foi uma verdadeira feijoada eletrônica. Para começar, o início da noite foi estremecido pelas linhas de baixo rasgadas e pelos agudos sintetizadores do electro e do electro-house, com destaque para os onipresentes brasileiros Bruno Barudi e Felguk. Além do mais, não importa se você o ama ou o odeia: é inevitável citar a apresentação do projeto belga Dr. Lektroluv, sempre marcante com seu figurino futurista/ kitsch / extraterrestre e seu electro cru e reto, que deve fazer todo o sentido no planeta de onde veio.

Ainda, a edição deste ano contou com figurões que costumam ser monopólio de festivais e clubs europeus, como o eurotrance de Calvin Harris e Paul Van Dyk, a introspecção de Sasha, e Dubfire, a metade mais inovadora do duo Deep “baby when the lights go out” Dish, hoje convertido ao techno.

A ideia de uma tenda principal, naturalmente, é agregar os nomes mais famosos e os sons mais facilmente digeríveis para o consumidor eventual de música eletrônica. Então, a formatação do line-up pareceu consistente com a proposta. Mesmo assim, inevitável apontar que alguns nomes seriam melhor aproveitados se colocados em horários diferentes. O trance rápido e melódico de Paul van Dyk caberia mais em um momento de auge da festa, enquanto as batidas emocionais e envolventes de Sasha encontrariam melhor acolhida se abraçadas pelo calor do astro-Rei, no encerramento do festival.

 

Tenda M_nus

 

A tenda que levou o nome do selo do inacreditável Richie Hawtin trouxe para o seio da XXXperience o melhor do techno de maneira inovadora. Mesmo tendo se apresentado como o grande refúgio para os amantes do underground, foi uma grata surpresa a pista ter permanecido lotada do primeiro kick ao último synth.

Depois do minimal loopado e quadrado de Magda, da paranóia dançante de Marc Houle e da mixagem inconfundível de Richie Hawtin, inegavelmente um dos melhores e mais influentes DJs do mundo, parece que uma cena antes dominada pela velocidade e por palatáveis melodias abre um importante novo nicho para uma das vertentes mais cerebrais e complexas da música eletrônica.

 

Tenda House Mag

 

Desde que a Chicago dos anos 80 deu à luz o house, o estilo que definiria para sempre a electronic dance music, a vertente certamente sofreu várias mutações e segmentações. Hoje, o house engloba uma quantidade infinita de acepções e sub-vertentes. O objetivo da tenda House Mag foi tentar trazer um grande resumo do que é esse estilo hoje no mundo. Das levadas acessíveis e populares de Mark Knight, passando pelo sentimento disco do grande Renato Cohen até o fidget barulhento e vocalizado de Afrojack, a pista foi uma grande viagem panorâmica pelo estilo. Destaque da pista vai para o orgulhosamente brasileiro Wehbba, mais um exemplo de tupiniquim que fez sucesso antes lá fora do que aqui (Gui Boratto feelings?). Deu aula de performance e de humildade, interagindo com o público e estampando, em todos os momentos, um grande sorriso do rosto. Foi o grande exemplo do que é a arte da discotecagem: uma atuação horizontal, sem pedestais, próxima dos espectadores. No fim das contas, esta foi a lição que Wehbba relembrou aos amantes da música e da dança logo no início da madrugada: o DJ jamais deve estar acima da pista, mas sim ao lado dela.

 

Tenda Trance

 

Da mesma maneira que no caso do sistema de som, a formação da tenda trance também é uma resposta da organização aos insistentes pedidos do público, que clamava por uma “volta às raízes”; ou seja, um palco exclusivamente voltado às vertentes psicodélicas do trance, com full on à noite e progressivo pela manhã, tudo isso sem barreiras, sem catracas, sem backstage.

A Tribaltech, festival multicultural realizado em Curitiba em agosto de 2010, foi pioneira nessa construção de um espaço exclusivo para a psicodelia eletrônica. Agora, a XXX estabeleceu um precedente do mesmo tipo, em larga escala e com maior visibilidade. Bom para o público, que teve seu pedido atendido, e para a XXX, que dignifica esse gênero para o qual o tanto deve. Parece que o psytrance, cansado após uma década de intensa exploração nos mesmo moldes, encontrou um novo caminho para se manter no mainstream.

Naturalmente, deve-se apontar que, para isso, é fundamental a renovação das apresentações, tão constante em outros gêneros e tão difícil no caso do full on. A repetição quase paranóica de atrações, ano a ano, deixa no ar a reflexão de que, sem novidades na vertente mais acelerada do psy, de pouca valia serão os demais esforços para aplacar o saudosismo raver.

Com relação às apresentações, no início da noite, imperou o full on dito high-tech. O destaque ficou para Eskimo, artista de mística própria que, com todas as suas peculiaridades, polêmicas e fanfarra, continua atraindo grande atenção do público com sua mistura de linhas de baixo rasgadas, peso, velocidade e pitoresca interação com a pista. Rolou até remix de Panamericano!

Mas o melhor do stage realmente coube ao progressivo, que imperou do amanhecer ao último beat da festa. O destaque ficou para a apresentação clássica do veterano Psysex, para os grooves rápidos e melódicos do progressivo de Day Din (considerado por muitos o melhor do Trance Stage) e para Weekend Heroes, novo projeto israelense que aos poucos desponta, e que deve ser presença constante no ano de 2011 com seu progressive house sério e pesado.

 

Estrutura

 

Para os ouvidos: sound system, a grande estrela do line-up

 

Com um público de mais de 30 mil pessoas, há certamente o mesmo número de visões sobre a festa, cada uma elegendo o melhor e o pior momento, o melhor e o pior DJ. Mas, se cada um desses 30 mil pontos de vista tem um olhar, os 30 mil ouvidos são unânimes: o sistema de som da XXXperience 14 anos foi a grande vedete da festa.

A crítica ao sound system das open airs se transformou em um verdadeiro clichê nos últimos anos, independentemente da marca da festa, do núcleo organizador ou da cidade em que acontecia. Por isso, a qualidade e potência quase inacreditáveis do som em todas as pistas merece o pódio de grande destaque do festival. Foi-se da potência maltratante (no bom sentido) dos graves nas beiradas do Palco Principal e da Tenda Trance à atmosfera musical envolvente das Tendas House Mag e M_nus, que não deveram em nada a qualquer club de referência mundial.

Outro fato que merece nota é que a tradicional prática de deixar o volume mais baixo para “atrações menores” e dedicar a máxima potência para os DJs considerados como “principais” não aconteceu nessa XXX. Respeito ao público, que pôde curtir um sistema de som excepcional em todos os sentidos, e respeito aos artistas, que puderam contar com toda a potência disponibilizada pela organização para mostrar seus trabalhos, sejam novatos promissores, sejam medalhões gringos.

A XXXperience e o Grupo No Limits definiram um novo padrão em potência e qualidade de som, que deve servir de referência para qualquer “festival de música eletrônica” que assim pretenda ser denominado.

 

Para os olhos: decoração e arte 3D

 

Alardeada como uma das grandes novidades dessa edição, as projeções 3D no grande telão que ornamentava o palco principal, infelizmente, deixaram a desejar. Durante as apresentações, o telão “convidava” o público a colocar os óculos – incluídos na compra do ingresso – para curtir as animações que viriam. Contudo, o efeito de “terceira dimensão” era muito superficial para aqueles que esperavam se surpreender com imagens mais marcantes, e o veredito final é que uma das grandes promessas da festa, honestamente, não rolou.

Mesmo assim, não era esse o único uso para os óculos. Menos alardeados do que o telão, foram muito mais eficientes e marcantes os painéis com arte 3D que ficavam em frente à Tenda M_nus e, principalmente, a grande pirâmide de tecido presente no Trance Stage, que mostrava uma nova pintura dependendo do “quadradinho” pelo qual se olhava no óculos e da cor projetada pelos canhões de luz que a iluminavam.

Com relação à decoração, foi adequada e suficiente em todas as pistas, cabendo o destaque para os caprichados vídeos e imagens projetados nos telões. O excelente trabalho dos VJ’s certamente compensou a falta do 3D.

Durante todo o festival, ainda, as imagens dividiam o espaço com chamadas bem-humoradas também projetadas no telão como: “Grita aí!”, “Mush é du caraleo!” e “Meu cérebro não presta pra mais nada”. Oras, estamos numa festa, e esse tipo de bobagem faz parte da diversão, certo?

Por fim, no aspecto visual, pode-se apontar um pequeno pecado: a falta de fidelidade da decoração com a arte-conceito “Mundo XXXperience”, presente no site principal. A Pista House Mag foi provavelmente a que mais se aproximou do conceito de “Colmeia”, com a criativa ideia de pendurar no teto da tenda guarda-chuvas brancos, que criavam o efeito de favos de mel. De resto, embora a estrutura da festa fosse suficiente e muito bem executada, ficou a pergunta: onde estava o restante do “Mundo dos Sonhos”? Podemos forçar um pouco a interpretação e dizer que a “Rainha Borboleta”, na verdade, desabrochou do “casulo” do Main Stage do SWU.

Talvez seja o caso de adotar uma das seguintes posturas: ou chamar um profissional renomado de cenografia, arte, moda, Carnaval ou algo do gênero que assine a festa, ou simplesmente abandonar conceitos megalomaníacos que não se refletem na realidade.

 

Notas finais: um novo Skol Beats?

Após uma festa para o qual o adjetivo “histórica” não parece exagerado, não tardaram a aparecer comentários consagrando a XXXperience como “o novo Skol Beats”.

Essa edição certamente parece, com as devidas proporções, ter se aproximado de outros festivais de referência mundial que também misturam várias vertentes, como o Glade Festival, no Reino Unido (que também teve suas origens no psytrance) ou ainda o Dance Valley holandês. Inclusive, o line-up da XXX 14 anos compartilhou muitos headliners da versão porteña da Creamfiels, realizada em Buenos Aires no mesmo fim de semana.

Mesmo assim, nossa pequena Babel tupiniquim não albergou todas as línguas eletrônicas. Se é para olhar para a sombra do Skol Beats, é notável, por exemplo, a ausência das batidas quebradas, do Drum ‘n Bass, do Dubstep e, porque não, do Hip-Hop.

Mesmo a festa demonstrando um verdadeiro caleidoscópio de estilos de maneira coerente e profissional, parece essa não ser a comparação mais adequada. Hoje, a cena eletrônica brasileira já é mais rica e muito mais multifacetada, e comporta muito mais do que um único grande festival de referência. Num país de 190 milhões de habitantes, já é possível haver uma miríade de estilos e conceitos de execução de um espaço para a música eletrônica. Há lugar para a alternatividade da Tribaltech, para a puxada pop do Skol Sensation e para um grande festival de várias matizes como essa XXX de 14 anos, cada qual com sua proposta e sua importância, sendo todas igualmente aguardadas pelos diferentes públicos.

Enfim, talvez a Fazenda Maeda não tenha sido palco de um novo Skol Beats, mas certamente viu o nascer de uma nova XXXperience. E isso, por si só, já basta para que a música eletrônica brasileira ganhe em grandiosidade e conteúdo e, finalmente, consiga seguir em frente, apesar dos “fantásticos” e globais” esteriótipos.

 

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