Uma das pessoas que notaram a “Revolução Psicodélica é o neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e um dos principais pesquisadores sobre o tema no país. Como evidências desse suposto “renascimento”, Ribeiro cita o crescimento de público (e de órgãos interessados em patrocinar pesquisas) no principal encontro do setor, o avanço de estudos clínicos e a ampliação das pesquisas no Brasil.
A expressão usada por Ribeiro reflete o slogan do último congresso da ONG Maps (Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos), que em abril reuniu nos Estados Unidos cerca de 3 mil pessoas de 40 países. Financiada por doadores, a entidade pesquisa e promove o uso médico de drogas psicodélicas desde 1985.
Em geral, todos os participantes compartilhavam da crença no potencial das drogas psicodélicas para curar doenças, mas Ribeiro lembra como o perfil do público mudou desde o primeiro encontro da associação, em 2011.
“O primeiro congresso não passou de 300 pessoas, com muitos hippies-chic da Califórnia e poucos cientistas. Neste ano havia muitos pesquisadores renomados, imprensa internacional e fundações e empresas interessadas em financiar pesquisas”, afirmou o pesquisador.
A antropóloga Beatriz Labate, autora de livros sobre o uso da ayahuasca em rituais religiosos, participou do encontro e endossa a avaliação de Ribeiro.
“A conferência foi fantástica, havia uma sensação de ter sido histórica. Os estudos estão mostrando cada vez mais uma forte evidência dos potenciais terapêuticos dos psicodélicos, e há um certo clima de que pode haver uma transformação real da legislação de drogas”, afirma Labate, professora visitante do Centro de Pesquisa e Estudos de Pós-Graduação em Antropologia Social (Ciesas) de Guadalajara (México).
Um dos pontos altos do encontro foi a apresentação de resultados de estudos do uso de MDMA, o princípio ativo do ecstasy, para tratamento de estresse pós-traumático. Em um vídeo, um veterano da guerra do Iraque relatou benefícios de experiências sob efeito da droga.
No ano passado, os EUA autorizaram a última etapa de estudos do emprego da substância para tratar o transtorno, um distúrbio de ansiedade que costuma acometer pessoas que tenham sido vítimas ou testemunhas de situações violentas e traumáticas.
Financiada pela Maps, a atual fase de estudos com humanos, que deve incluir o Brasil, é a última antes de uma eventual aprovação do MDMA como droga de prescrição pela FDA, a agência americana que regula medicamentos e alimentos. A expectativa da ONG é que a terapia com a substância seja autorizada nos EUA até 2021.
Os estudos anteriores, da fase dois, envolveram 130 pacientes com estresse pós-traumático – como veteranos de guerra, vítimas de violência sexual, policiais e bombeiros – que não tinham respondido a tratamentos tradicionais com medicamentos ou psicoterapia.
Após administração de três doses de MDMA sob orientação de um psiquiatra, os pacientes registraram, em média, uma queda de 56% na gravidade dos sintomas. Ao final do estudo, dois terços dos pacientes já não se encaixavam nos critérios que caracterizam o distúrbio.
“Essas substâncias não são maravilhosas para todo mundo. No ambiente correto, com pessoas certas, estado fisiológico (do paciente) correto, dose correta, são poderosíssimas. A Psiquiatria vai adorar quando começar a utilizar, porque são muito eficazes”, afirmou Ribeiro.
Estudos mostraram que a terapia com MDMA funciona porque a droga leva o cérebro a liberar hormônios e neurotransmissores que evocam sentimentos de empatia e confiança, enquanto reduzem medo e emoções negativas. Isso facilitaria os pacientes a analisarem com mais clareza seus traumas e os impactos em suas vidas.
Mas há quem acredite que uma eventual aplicação terapêutica, mesmo sob circunstâncias controladas, possa incentivar o uso ilegal recreativo das substâncias.
“Isso passa uma mensagem de que essa droga irá ajudá-lo a resolver seus problemas, quando muitas vezes ela cria problemas”, afirmou o psicólogo Andrew Parrott, da Universidade de Swansea (Reino Unido), ao jornal The New York Times.
Outro ponto importante é que o comprimido de ecstasy vendido de forma ilegal nas ruas, e que supostamente teria o MDMA em sua composição, pode ser formado por outras substâncias, perigosas e potencialmente danosas à saúde.
Quem também apresentou estudos no congresso Ciência Psicodélica 2017 foi o neurocientista brasileiro Dráulio de Araújo, do Instituto do Cérebro da UFRN.
Araújo e equipe estudam há oito anos o potencial antidepressivo da ayahuasca, chá também conhecido como santo-daime e usado há séculos em rituais religiosos na América do Sul.
No experimento mais recente, selecionaram 29 pacientes com depressão resistente a tratamento – 14 receberam a ayahuasca e 15 tomaram um chá como placebo. Após uma semana, 64% dos pacientes do grupo da ayahuasca tinham reduzido os sintomas da depressão.
“Embora o efeito placebo seja alto nesses casos, superior a 50%, o efeito da ayahuasca foi estatisticamente mais significativo do que nesse grupo de controle”, diz Araújo.
No Brasil, o uso religioso da ayahuasca é legal, regulamentado desde 2010.
Outra linha de pesquisa sobre ayahuasca e depressão, mas usando componentes isolados da bebida, é liderada pelo neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto D’or de Pesquisa e Ensino.
A equipe de Rehen comprovou que uma molécula da bebida, a harmina, pode incentivar o processo de neurogênese, de formação de novas células neurais humanas – efeito semelhante aos alcançados por medicamentos tradicionais para depressão – e a própria regeneração de neurônios.
Após quatro dias em contato com células relacionadas ao processo de formação de neurônios, a harmina elevou a proliferação dessas células em 70%.
Embora mais estudos sejam necessários e não haja garantia de que o uso do chá de ayahuasca tenha o mesmo efeito, pois as interações bioquímicas são mais complexas com a bebida integral, pesquisadores já colocaram o composto na lista de possíveis drogas contra depressão.
Para a antropóloga Beatriz Labate, o Brasil está assumindo um papel de destaque nas pesquisas sobre potencial terapêutico da ayahuasca.
“O uso da ayahuasca é regulamentado no Brasil, e está ligado a tradições com raízes culturais na Amazônia, além de ter uma penetração e legitimidade razoável em grandes cidades. Tudo isso cria um ambiente de pesquisa mais favorável, com maior acesso à substância, menos burocracias, estigmas e bloqueios. Também há um diálogo entre pesquisadores e usuários, o que é muito rico”, afirma.
Fala-se em “renascimento” da ciência psicodélica porque drogas como LSD, sintetizada pela primeira vez nos anos 1930, foram alvo de centenas de estudos clínicos nos anos 1950 e 1960.
Pesquisadores acreditavam que essas substâncias poderiam revelar dados sobre o funcionamento da mente e abrir caminhos para tratamentos revolucionários. Ao mesmo tempo, as drogas eram celebradas por artistas e músicos como parte da contracultura da era hippie.
Mas o foco, na cobertura da imprensa, em casos de problemas decorrentes do consumo desmedido dessas drogas, como suicídios e suposta decadência moral, levaram a uma reação que culminou com a proibição nos EUA, em 1970, do uso do LSD e de outros psicodélicos – legislação que foi seguida por outros países.
Isso levou a um hiato de quase uma geração nas pesquisas científicas rigorosas sobre os efeitos das substâncias psicodélicas, que começaram a ser retomadas apenas no final dos anos 1990.
“Essa demanda de pesquisa e aplicação na área médica ficou reprimida por 30 anos, e hoje há uma evolução gradativa na ciência dos psicodélicos”, avalia Dráulio de Araújo.
O neurocientista diz não acreditar que substâncias como LSD e MDMA serão encontradas em prateleiras de farmácias no futuro. Para ele, o cenário mais provável, caso passem por todos os testes e autorizações, é que se enquadrem mais como auxiliares de tratamento do que como medicação em si.
“Não vejo a perspectiva de um médico receitar, por exemplo, 50 ml de ayahuasca para um paciente com depressão, mas a possibilidade de um uso controlado, no ambiente correto, como uma ferramenta de procedimento, como a função de um anestésico em um processo maior.”
Para Sidarta Ribeiro, é preciso regulamentar o uso terapêutico de todas essas drogas, “porque todas podem ser usadas e abusadas”. “Isso dará segurança de uso pessoal, porque não há droga do bem e droga do mal. Se fosse para proibir substâncias perigosas, o álcool seria proibido e o ecstasy seria liberado”, afirma.
Ribeiro vê ainda um lado moral da “revolução psicodélica”.
“A promessa psicodélica no curto prazo é cuidar do sofrimento humano, mas no longo prazo é cuidar da estruturação social. Porque vivemos numa situação de muito sofrimento na sociedade, pela desigualdade gigantesca, porque as pessoas que têm muito, e muito mais do que podem usufruir, não estão satisfeitas. A promessa dos psicodélicos é mudar isso”, sugere.
–