A organização do Boom Festival divulgou um texto em que explica o embasamento temático da próxima edição, que acontecerá entre 28 de julho e 4 de agosto de 2020 em Portugal, confira!
Não pode haver dicotomia entre o planeta e a ação humana. É urgente imaginar e agir JÁ para uma vida comum. O pessimismo nunca venceu qualquer batalha.
“Não existe um Plano B, ou melhor, um Planeta B. Temos de viver neste planeta e o salvar”.
A afirmação é do cientista Martin Rees. Igualmente do seio da comunidade científica, em Fevereiro de 2000, o vencedor do Prêmio Nobel Paul Crutzen e Eugene Stoermer declararam que vivemos numa nova época geológica, o Antropoceno.
Ao conter o prefixo anthropos, que significa “ser humano”, o termo define um período marcado pela ação humana com efeito profundo sobre o meio ambiente.
Designaram o início do Antropoceno no ano de 1784, quando James Watt patenteou a locomotiva a vapor. O começo desta era é controverso. Foi a colonização da América, as rotas marítimas que conectaram continentes no século XV/ XVI, a rota da seda ou o nascimento do capitalismo industrial? A bomba atômica, a grande aceleração no consumo a partir de meados do século XX ou a explosão capitalista na Ásia?
Época geológica ou não, os cientistas estão conscientes do impacto humano na Terra.
A Terra existe há cerca de 4,5 mil bilhões de anos, sendo este momento histórico único pois a nossa espécie, o homo sapiens, tem a consciência de que pode mudar o planeta.
Somos tão numerosos que o podemos despojar a ponto de se tornar um mundo estéril para as gerações futuras. Em oposição, o conhecimento e tecnologias podem, eventualmente, ajudar-nos a reverter a situação.
Tudo depende de nós; todos, hoje, aqui, agora.
A capacidade de sermos visionários é o elemento chave. A solução poderá estar numa faculdade inata de qualquer ser humano: a imaginação.
O epíteto visionário é vislumbrar cenários futuros e torná-los reais. É aplicado a pessoas, grupos, organizações, comunidades, cidades, países, festivais que, apesar da situação aparentemente sem esperança, ainda conseguem fazer algo, buscar respostas, imaginar soluções, pensar criativamente, gerar ideias para combater a apatia – formas alternativas de impactar.
A capacidade da Terra advém dos nossos estilos de vida e nunca será sustentável se 9 bilhões de pessoas consumirem tanta energia, água, carne, peixe ou outros recursos como nos países industrializados. Há 50 anos, a população planetária era de 3.5 bilhões. Hoje são 7.6 bilhões e as previsões apontam para 9.8 bilhões em 2050. A pressão urbanística vai aumentar, em 2030 cidades como Lagos (Nigéria) ou São Paulo (no Brasil) terão populações acima dos 30 milhões. Em 2050, 70 por cento da população mundial viverá em cidades.
Como alimentar tantos homo sapiens e os animais (criados em condições deploráveis) que este consome?
Para produzirmos um quilo de cereal precisamos de uma a três toneladas de água; um quilo de carne precisa de quinze toneladas. Entre 2010 e 2050 os efeitos ambientais do sistema alimentar podem aumentar entre 50-90 por cento.
A agricultura convencional, que é o maior utilizador mundial de água (70 por cento), propõe o aumento da produção. Essa intensificação trará mais herbicidas e fertilizantes químicos que matarão os micro-organismos dos solos que são a base da vida na Terra.
No pólo positivo, há um crescente movimento em direção à agricultura biológica e regenerativa, o que significa mais respeito pelos solos, pela diversidade de culturas e o bem-estar animal. A edição de 2018 do estudo “The World of Organic Agriculture” anuncia vários recordes: 57,8 milhões de hectares foram geridos de forma orgânica no final de 2016 – um crescimento de 7, 5 milhões em relação a 2015; nos principais mercados o crescimento é a dois dígitos (só na França cresceu 22 por cento); foram registados mundialmente 2,7 milhões de produtores orgânicos; o mercado vale 80 mil milhões de euros; em 15 países, 10 por cento da superfície agrícola é orgânica, um novo record.
Existe evidência científica sugerindo que o modo de produção orgânica pode suprir as necessidades de uma população crescente o que pode propiciar abordagens conscientes de lidar com a natureza e a vida animal em sentido anacrônico com a agricultura convencional.
O Antropoceno não é, assim, uma era uniforme.
Atravessamos a chamada 4ª Revolução Industrial e parece um passado distante: em 1820 só 12 por cento das pessoas sabia ler. Em 2018, a cifra ascendeu a 83 por cento. Em 1800 apenas 43 por cento das crianças chegava aos cinco anos de idade, hoje são 96 por cento. E o mundo tem caminhado rapidamente para suprir as necessidades materiais, em 1820, 94 em 100 pessoas viviam em condições de pobreza extrema (estimada em $1,9 US dólares/dia) e em 2015 essa cifra era de 10 pessoas em 100.
Socialmente, os partidos populistas mais do que triplicaram o seu apoio na Europa nos últimos 20 anos. Líderes populistas estão espalhando mensagens de ódio e confronto. Na Ásia, “a governança algorítmica”, como refere Martin Chorzempa, já está em movimento com centenas de milhões de câmeras de vigilância para controlar o seu país mais populoso.
Em contrapartida, no mundo corporativo, várias empresas lançam slogans como mantras que misturam o late capitalism com uma nova consciência do planeta: triple bottom line; change management; zero marginal cost; circular economy; theory u; mindfulness; clean capitalism;…
Será que estes novos mantras significam uma crescente preocupação com valores planetários? São manobras de marketing? Ou maneiras de melhorar a produtividade em sociedades que continuam a reger-se pela ideologia do crescimento?
O Antropoceno não deixa apenas uma marca indelével no planeta azul como está a modificar o próprio ser humano: irrupção da inteligência artificial, do dataísmo ou biotecnologia.
Deixamos de valorizar a privacidade e contentamo-nos com o reforço positivo fácil (like, dislike, share, friend, unfriend, emojis) de outros perante a momentos das nossas vidas. Ambientes desregulados dos princípios de boa convivência como algumas redes sociais são um oleoduto para discursos de ódio e bullying.
As plataformas sociais tanto nos podem afastar como nos unir. Nesse oceano volátil há causas que se mobilizam: #ExtinctionRebellion; #BlackLivesMatter; #Occupy; #TharirSquare; #UmbrellaRevolution; #YouthForClimate… Em paralelo, o movimento #ReclaimSocial pretende uma convivência online positiva num contexto de frequentes julgamentos inquisitoriais.
Falamos de super humanos, da transferência da consciência para computadores ou de máquinas mais inteligentes que nós. Por outro lado, nunca como hoje existiu tanta evidência científica sobre os benefícios do contato dos seres humanos com a natureza, ou das práticas de yoga, esportes, meditação, wellness, ikigai, hygge e fika.
A nossa capacidade para salvar o planeta equipara-se ao poder que temos para o destruir. A ação humana não pode estar destinada ao fatalismo e todos somos confrontados com fatos da destruição de ecossistemas.
Não é segredo que há muitas espécies em risco. Sob outra perspectiva, o panda gigante já não está periclitante. A reintrodução do lince ibérico em Portugal e Espanha demonstra que a extinção animal não é um destino irreversível e está em larga parte nas nossas mãos. Foi com esta consciência de esforço coletivo que se baniram produtos químicos nocivos, tendo como consequência a redução do buraco do ozono.
Pode ser útil considerar essa estranha convergência de eventos como um convite para a renovação de ideias.
Numa época em que tudo o que alcançamos civicamente parece ressurgir – nacionalismo; fascismo; preconceito; sexismo; violência; ignorância; fanatismo; superficialidade; manipulação midiática; ultra-individualismo – devemos reformular as nossas abordagens.
Esta era do Antropoceno pede concretamente um reexame da longa tradição de pensamento utópico, processos transformadores, despertares individuais e da celebração coletiva do Boom Festival.
Através da sua assimilação podemos reinventar o ser e o sentir. Conseguimos hibridizar velhas e novas maneiras de estar no mundo, originando práticas inéditas.
Ao longo de mais de 20 anos no Boom têm proliferado centenas de pensadores, ativistas que pugnam por uma maior consciência aquando da nossa passagem pela Terra.
O Boom não é um festival escapista nem pode ser um local onde o hedonismo se sobrepõe à consciência, a passividade ganha sobre o pensamento crítico, a profundidade do sentir sucumbe aos desafios de um mundo em mudança quando deixamos o festival e regressamos a nossas casas.
Desmond Tutu, da África do Sul, diz que reduzir a nossa pegada de carbono não é apenas uma necessidade ambiental, é “o desafio dos direitos humanos do nosso tempo“. Ele apela ao combate destas causas como o apartheid foi travado: com reprovação moral, boicote e desinvestimento econômico.
Ser um visionário hoje – no Antropoceno – é sentir com o coração o que está à nossa volta. É mudar hábitos. É fazer algo. É imaginar ação constante, militante, individual e colectiva, nas pequenas escolhas e nas grandes causas.
A escolha do tema para o Boom Festival 2020 é um convite à reflexão e ação sobre o mundo em que vivemos. Ao impacto que temos. E como o mudar.
Visionamos com vocês o alcance de horizontes comuns pois o que construímos é uma co-criação, a confluência celebratória de subjetividades humanas durante cada edição.
Mais de duas décadas após a fundação do Boom Festival, séculos após a invenção da máquina a vapor, em plena ebulição de um planeta maravilhoso e inconstante, onde as possibilidades luminosas se entrecruzam com previsões fatalistas, chamamos o ativista em você, o ser imaginador, apelamos à natureza construtiva do ser humano para um impacto regenerativo, para a vivência num bom Antropoceno.
O Tema do Boom 2020 é O ANTROPOCENO.