Depois de décadas silenciada pela onda proibicionista, a pesquisa com substâncias psicodélicas vem conhecendo um renascimento nos últimos anos, impulsionada por resultados promissores no tratamento de transtornos mentais.
Essa revolução, como muitos chegam a descrever, passa pelo Brasil, onde um número pequeno —mas crescente— de pesquisadores se dedica ao tema. A esse grupo pertence o neurocientista Eduardo Schenberg, que liderou o primeiro estudo com MDMA para o tratamento de estresse pós-traumático realizado no país.
O MDMA, ou metilenodioximetanfetamina, princípio ativo do ecstasy, está em vias de se tornar a primeira droga psicodélica a receber a licença de remédio nos EUA, na forma de adjuvante em terapia para estresse pós-traumático. A substância encontra-se na última fase de testes clínicos, com resultados até agora bastante promissores.
A mudança de paradigma tem como um de seus principais propulsores o trabalho desenvolvido pela Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla em inglês), organização americana fundada em 1986 que criou e vem disseminando o protocolo para o uso terapêutico do MDMA.
Foi esse protocolo que Schenberg, membro do Instituto Phaneros, trouxe e aplicou pela primeira vez em pacientes brasileiros —e cujos resultados serão publicados em breve na Revista Brasileira de Psiquiatria.
O pesquisador tomou contato com essa terapia por volta de 2014, quando fazia pós-doutorado na Inglaterra, num curso oferecido pela Maps. “Eu conhecia alguns resultados deles, mas de uma perspectiva mais fria, de quem lê um artigo. No curso pude ver a coisa em ação, as sessões com os pacientes. Aquilo me impressionou muito e decidi aplicar no Brasil”, diz.
As dificuldades, contudo, foram maiores do que ele imaginava. Em primeiro lugar, pelos recursos. Após uma busca frustrada por verbas públicas e privadas, o pesquisador optou por um financiamento coletivo na internet. Mas a meta de R$ 50 mil só foi batida faltando dois dias para o fim —do contrário, ele perderia tudo. A Maps contribuiu com mais R$ 50 mil.
Depois, pela importação do MDMA, também fornecido pela associação americana. A agência de fármacos e alimentos dos EUA demorou mais de cinco meses para autorizar a exportação do produto. Ocorre que a autorização brasileira, à época, expirava em seis meses. “Era impossível realizar todo o processo em poucos dias. Só com a ajuda de advogados, e por meio de um mandado de segurança, conseguimos concluir o processo.”
Os quatro pesquisadores diretamente envolvidos no teste ainda passaram por uma capacitação nos EUA, onde se submeteram a sessões de terapia sob efeito do MDMA. “Foi fundamental passar por essa experiência, pois ela nos permitiu reconhecer melhor os efeitos da substância, além de nos dar mais segurança para atuar”, diz Bruno Rasmussen, médico da equipe.
Dos 60 voluntários brasileiros, apenas 3 cumpriram os rigorosos critérios para entrar no ensaio —pessoas com estresse pós-traumático grave, saudáveis, e que até então não haviam respondido a nenhum tratamento.
Antes do experimento, que mistura psicoterapia com o uso do MDMA, os pacientes passaram por três encontros preparatórios, nas quais os terapeutas, Alvaro e Dora Jardim, buscaram estabelecer um vínculo emocional com eles, explicar os efeitos da substância e tirar eventuais dúvidas.
Veio então a primeira sessão com MDMA —de um total de três. Após receberem a substância, os pacientes tiveram seus sinais vitais monitorados a cada meia hora. Cerca de duas horas depois, uma nova dose, de 50% a inicial, era oferecida, para manter os efeitos —aceita por todos.
Na sessão, explica Dora, o voluntário deve ficar o mais introspectivo possível, a fim de entrar em contato com as próprias emoções. Assim, ficava numa poltrona, num ambiente de pouca luz e música tranquila, com tapa-olho e fone de ouvido à disposição.
“Nosso papel era dar apoio, sem interferir em nada, para que ele expressasse as emoções e vivenciasse as sensações que fossem surgindo. É isso que faz o paciente trazer o trauma à consciência e, assim, elaborá-lo e integrá-lo”, conta Alvaro.
“O paciente é como uma canoa e os terapeutas, como os faróis que avisam onde estão as pedras e os obstáculos, para que ele possa encontrar o seu caminho”, resume Schenberg.
Em geral, a pessoa traumatizada encontra-se num estado de petrificação emocional e desconfiança profunda. O MDMA quebra esse escudo, facilitando o processo terapêutico. “Do ponto de vista neuroquímico, a substância bloqueia a comunicação com a amígdala, região do cérebro responsável pelo medo, e libera ocitocina, hormônio que ajuda a criar vínculo interpessoal. O paciente ganha confiança e perde o medo das pessoas ao redor, que se tornam, então, ideais para ele se abrir e desabafar”, diz Bruno.
Todos os pacientes apresentaram melhora expressiva. No pior dos casos, a redução dos sintomas, calculado por uma escala, foi de cerca de 30%; no melhor, o paciente saiu curado.
Foi o que aconteceu com Rafael (nome fictício). Devido a um abuso sexual sofrido quando criança e a um assalto à mão armada quando já era mais velho, Rafael desenvolveu fobia social. “Eu evitava sair de casa, socializar. Morria de medo de ser ridicularizado”. Ele também desenvolveu uma tosse constante. “Fui a vários médicos, mas nenhum conseguiu interrompê-la.”
Durante a sessão, ele conta, muitos sentimentos vieram à tona. “Eu senti raiva, tossi muito. Na última sessão, tive uma sensação física muito forte de renascimento, como se estivesse realmente saindo do canal vaginal.”
Depois do tratamento, a mudança foi grande. A tosse de décadas simplesmente sumiu, e ele passou a ter mais segurança tanto na vida social como no trabalho. “Passei a sentir que a minha vida estava boa. Pode parecer bobo, mas eu não sentia isso antes.”
Embora o experimento tenha tido um número pequeno de participantes, os resultados estão em linha com os maiores estudos do gênero. “Nossos dados se encaixam muito bem nos resultados das amostras maiores da Maps, em que cerca de dois terços dos pacientes chega no fim do tratamento livre do diagnóstico”, diz Eduardo.
Dentre as possíveis aplicações do tratamento com MDMA, Schenberg destaca uma que deve ser cada vez mais necessária no momento atual.
“Estou muito interessado em criar um protocolo de tratamento com MDMA para os profissionais de saúde envolvidos na luta contra a Covid-19 e que ficaram traumatizados com o que viram nos hospitais. Isso pode inclusive tornar o sistema de saúde mais operante, dado que está cada vez mais claro que a doença não vai passar tão cedo.”
Como foi o experimento
Resultados
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Via Folha