Desde o início deste ano é possível perceber um aumento considerável de notícias reportando a morte de jovens em eventos de música eletrônica. Só para citar os mais recentes tivemos casos trágicos no Time Warp na Argentina, Ozora Brasil e Tomorrowland Brasil.
Apesar de as drogas estarem presentes em toda a história da humanidade e em todos os contextos da nossa sociedade, quando o abuso acontece dentro da cena eletrônica a repercurssão é muito maior e as opiniões genéricas de pessoas alheias à cena acabam reforçando estereótipos bastante negativos em nossa sociedade conservadora e preconceituosa.
Para falar um pouco sobre esse contexto delicado, conversamos com a Lívia Estrella, psicóloga de formação e atua como redutora de danos no coletivo ResPire Redução de Riscos e Danos, um grupo que costuma estar presente em diversos eventos promovendo ações de conscientização e redução de danos. Confira:
O que exatamente é o ResPire?
O Respire Redução de Riscos e Danos é formado por um coletivo multidisciplinar de redutores de danos que visa o estímulo à reflexão, o autocuidado e o conhecimento sobre drogas em contextos de festas. Somos um projeto do Centro de Convivência É de Lei, organização da sociedade civil que atua no campo da redução de danos sociais e à saúde associados ao uso de drogas, desde 1998. O projeto é formado por uma equipe é multidisciplinar; é composta em sua maioria por psicólogos, biólogos, advogados, fotógrafo, farmacêutica, publicitária, designer e historiador. Todos receberam capacitação. Atualmente Gabriel Pedroza está como coordenador do projeto.
Conte-nos um pouco sobre a história do projeto:
O projeto nasceu de um convite do Coletivo Balance (Bahia) em 2008 para que alguns redutores de danos do Centro de Convivência É de lei (São Paulo) fossem conhecer o trabalho pioneiro de informação e cuidado em relação ao uso de drogas em contexto de festas realizado pelo Balance na Bahia. Após a experiência na Bahia, o Centro de Convivência É de lei escreveu um projeto para um edital e foi contemplado. Inicialmente, em 2010, o projeto chamava-se “Saúde em Festa” e foi financiado pelo Departamento de Hepatites do Ministério da Saúde, Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e a UNESCO. Foi realizado um grupo focal, no qual se discutiu o nome para o projeto e seus objetivos específicos. O objetivo do Projeto Respire é estimular a reflexão sobre autocuidado e o uso de substâncias. Hoje contabilizamos mais de 40 ações realizadas em festivais de música eletrônica, rolêzinhos, baixo Augusta, festas universitárias, praça Roosevelt, além da realização de seis capacitações de novos redutores de danos.
Como funciona um projeto de redução de danos? Quais as políticas e práticas de redução de danos que vocês implementam para diminuir os riscos do usuário de drogas?
O trabalho pautado na redução de danos tem como norte, o vínculo com usuários de substâncias. Este é uma relação ética, pautada no respeito ao usuário e a sua escolha de consumir substâncias. No ResPire, as intervenções ocorrem em contextos de festas a partir do acolhimento e disseminação de informações e orientação sobre as substâncias. A partir de diálogos sem julgamento e aceitação das pessoas, podemos conversar abertamente sobre a questão das drogas, refletindo sobre os possíveis riscos e estratégias de cuidado. Esse tipo de abordagem possibilita minimizar os riscos e danos associados ao consumo de substâncias e a prática de sexo seguro. A equipe também distribui material informativo sobre álcool e outras drogas, preservativos, água e outros insumos, por exemplo, Kit Sniff (um kit individual criado para usuários de drogas aspiráveis, que reduz o risco de infecção por hepatite). O ResPire também realiza acolhimento, acompanhamento terapêutico e cuidado para usuários com experiências difíceis após ingestão de psicodélicos e/ou outras substâncias.
Na matéria exibida pelo Fantástico no dia 10/04 o programa enfatiza que as raves/festas de música eletrônica são regadas à drogas. As drogas em geral, principalmente as sintéticas, são uma realidade nas festas eletrônicas, não há como negar. Qual a opinião de vocês sobre o uso de substancias ilícitas nessa cena em comparação com eventos de outros estilos musicais?
Infelizmente, este é um recorte simplificador e reducionista sobre o cenário da música eletrônica, que apenas corrobora para a manutenção do estereótipo das raves e dos seus frequentadores no imaginário social da cultura repressiva. O ser humano, desde o início da humanidade busca alterar a consciência de diversas maneiras com diferentes sentidos atribuídos a estes usos, e vivemos em uma sociedade capitalista em que o consumo de tudo é estimulado o tempo todo.
Não existe uma única cultura no mundo que não tenha feito o uso de substâncias para alterar a consciência e isso é especialmente verdadeiro no contexto de festas, rituais e confraternizações de qualquer espécie: o uso de álcool e outras drogas acontece onde houver pessoas, isso é fato. Seja em micaretas, shows de rock, churrascos, festivais sertanejos, rodas de samba, casamentos, pancadões ou festivais de música eletrônica. Cada estilo musical possui um contexto único, mudam os grupos, mudam as danças e vestimentas, consequentemente, mudam as drogas de preferência. Nos shows de rock você poderá identificar uma prevalência de consumo de bebidas alcóolicas, já nos pancadões a predominância pode ser de “lança” e “pó” (utilizamos as aspas, pois como não há testagem dessas substâncias, o usuário não tem garantia sobre o produto que está comprando com o uso destas nomenclaturas) e nas festas de música eletrônica podemos dizer que talvez a prevalência seja de maconha, “ecstasy” e “LSD”. Porém, o consumo de drogas é apenas uma fração do que há nas festas/festivais. A essência do trance está relacionada com a expansão da consciência, que pode ser alcançada com a vibração da música, não necessariamente com o uso de substâncias. Especialmente nos festivais, temos a presença de dançarinxs, artistas plásticos e circenses, yoguis, artesãos, permacultores, terapeutas… que através da arte, da dança e outras vivências constroem um ambiente com forte potencial de expressão criativa. Os festivais tornam-se um espaço de encontro de pessoas dispostas a explorar outras formas de ser, se relacionar, dançar, de se conectar (espiritualidade) e até mesmo para catarse (em quais outros locais isso é possível?!).
Como vocês enxergam a implementação da redução de danos nas festas de música eletrônica aqui do Brasil?
A Redução de Danos (RD) em festas tem avançado nos últimos anos no Brasil. Depois da criação do Balance (BA), surgiram pelo país mais alguns coletivos: ResPire (SP), Balanceará (CE), Coletivo Lótus (RS), Recifree (PE), Celebrate (RN), entre outros. Nossa maior dificuldade é em relação ao investimento, pois as festas costumam investir mais nos DJ’s. Assim,o contrato de uma equipe multidisciplinar de Redução de Danos é colocada em segundo plano. Ainda é preciso conscientização de que o trabalho de RD não é luxo ou mero “plus” marqueteiro, mas sim um trabalho que visa acima de tudo estimular e preservar a saúde, o conhecimento e o bem estar das pessoas que ali se encontram. Quando o foco dessa visão mudar, certamente contaremos com mais equipes de RD nas festas.
Como é a relação desses eventos com o projeto Respire? Existe algum problema de aceitação?
Por se caracterizar em uma prática calcada em princípios como o respeito à decisão, o fomento da autonomia, o incentivo ao autocuidado e bem estar da pessoa, nosso trabalho possui grande aceitação dentro desse contexto, especialmente entre os usuários, os beneficiários diretos. Em relação aos grandes festivais, no entanto, notamos que contratar uma equipe de Redução de Danos implica reconhecer que há uso de outras drogas naquele local, e para não se comprometerem ou sofrerem quaisquer tipos de represália ou complicações com a lei (apesar de termos respaldo no artigo 20), as grandes produtoras preferem não oferecer esse serviço, o que é lamentável, pois algumas mortes e outras complicações poderiam ser evitadas.
Como vocês veem o processo de efetivação de Redução de Danos no Brasil?
Evoluímos desde que a RD chegou ao Brasil (Santos, 1989, com usuários de drogas injetáveis), inclusive em termos de legislação. Tivemos a criação da Portaria nº1028 em 2005, que regulamentou as ações de Redução de Danos sociais e da saúde a usuários de Álcool e outras drogas , e a consequente mudança (ainda que tacanha) da lei sobre drogas (11.343/2006), que despenalizou o usuário e inseriu preceitos da RD em alguns artigos, como o artigo 20: “Art. 20. Constituem atividades de atenção ao usuário e dependente de drogas e respectivos familiares, para efeito desta Lei, aquelas que visem à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e dos danos associados ao uso de drogas”.
Contudo, ainda falta dar corpo ao texto. Falta atualização e/ou capacitação dos profissionais que trabalham direta ou indiretamente com usuários de drogas. Precisamos de políticas públicas mais nítidas e corajosas, como a descriminalização de todas as drogas. Esse seria um grande passo para a efetivação da Redução de Danos no Brasil. Outro aspecto relevante em relação à Política de Redução de Danos no Brasil, é a aceitação desse conceito e atuação no poder público e no SUS, entretanto ainda precisa avançar, inclusive essa profissão deve ser regulamentada.
Como poderia ser feito um trabalho de conscientização para acabar com o preconceito relativo aos usuários de álcool e outras drogas na sociedade?
Quando se trata sobre drogas é necessário enxergar através dos óculos da razão, do pragmatismo, afastando-se de paixões ideológicas e moralistas, da visão de mundo maniqueísta. É preciso que a sociedade compreenda que o uso de substâncias alteradoras de consciência faz parte da história evolutiva da Humanidade, e que na sociedade moderna o abuso de drogas é um fenômeno que reflete a forma desequilibrada e injusta da sociedade se organizar, se comunicar e se valorizar. É um fenômeno que está no cerne da sociedade, e não nas suas periferias.
É importante que a sociedade se responsabilize pela qualidade de vida dos cidadãos, no sentido de diminuir a estigmatização dos usuários de substâncias, que haja mudança na política sobre drogas para evitar as violações de direitos que ocorrem, principalmente entre as populações mais vulneráveis. Outro aspecto que envolve mudanças nas leis sobre drogas é em relação ao aumento de encarceramento associado ao tráfico, a população negra, pobre e periférica que sofre muitas conseqüências do racismo e estigmatização.
Projeto Respire: https://www.facebook.com/projetorespire/